Thomas Piketty: ''o socialismo participativo é um cenário aberto para a crise que virá''

Thomas Piketty: ''o socialismo participativo é um cenário aberto para a crise que virá''

Economista francês aauor de “Capital e ideologia”, analisa em entrevista as saídas paea a crise económica e social.

Por Roberto Ciccarelli  –  As grandes agitações político-ideológicas recém começaram. Em seu último, monumental, livro Capital e ideologia (em português, pela Editora Intrínseca, com lançamento previsto para julho), Thomas Piketty observa-os a partir de uma ideia norteadora contra as antigas e novas desigualdades que serão produzidas pela crise desencadeada pela pandemia de Covid-19. O economista francês fala de um “socialismo participativo“, cujo objetivo é provocar uma transformação radical do modo de produção capitalista e de seu regime de propriedade, que deveria ser transformado em uma “propriedade social e temporal que também pode exigir uma reforma constitucional”. Nessa perspectiva, o tão comentado retorno do estado à cena assume uma conotação política precisa.

Na opinião de Piketty, é uma questão de transformar o antigo estado social, restabelecendo uma tributação justa e um regime financeiro internacional, para que os mais ricos e as grandes empresas possam contribuir com o necessário. Um novo regulamento global para garantir a sustentabilidade social e ecológica também está vinculado a esse repensamento. “É desnecessário dizer – ressalta Piketty – que essa transformação requer muitos repensamentos. Por exemplo, o presidente francês Macron e o presidente estadunidense Trump estão prontos para anular as vantagens fiscais aos mais ricos decididas no início de seus mandatos?”.

A entrevista com Thomas Piketty[1] é de Roberto Ciccarelli, publicada por Il Manifesto, 09-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

Nos primeiros meses da nova crise, o Estado foi usado em todo o mundo como garantia contra os danos causados pela pandemia à saúde, às empresas e aos trabalhadores autônomos. É suficiente reduzir as desigualdades do passado e outras que virão a ocorrer no amanhã?

A crise social e econômica desencadeada pela emergência de saúde mundial demonstra a violência das desigualdades sociais e a necessidade de mudar o sistema econômico. Os seguros sociais podem ajudar a amortecer o choque, e sua ausência pode agravar a crise, como está acontecendo hoje nos Estados Unidos. Mas não serão suficientes: todo o modelo econômico deve ser repensado, de maneira mais equitativa e sustentável.

Por que você acha que é necessária uma reforma tributária progressiva dos impostos sobre a renda e sobre o patrimônio?

A tributação progressiva é uma das instituições que contribuiu a reduzir as desigualdades nas sociedades ricas durante o século XX, garantindo ao mesmo tempo a sua prosperidade. Nos Estados Unidos, a alíquota fiscal aplicada às rendas mais altas foi em média de 82% entre 1930 e 1980, e isso não impediu a prosperidade, pelo contrário. Na década de 1980, Reagan elevou a taxa para mais de 28% na esperança de estimular a inovação e o crescimento. Como resultado, a desigualdade explodiu, os bilionários prosperaram. E o crescimento caiu pela metade: 1,1% ao ano do crescimento da renda nacional per capita entre 1990 e 2020, em comparação com 2,2% entre 1950 e 1990 e 2,1% entre 1910 e 1950. Historicamente, a prosperidade vinha da instrução e da igualdade, não de uma busca desenfreada por desigualdade e esgotamento de recursos. Em meu livro, proponho fazer um balanço da história da progressividade fiscal e seguir nessa direção, tanto a nível nacional quanto europeu, permitindo aos países que desejam votar por maioria um suplemento da progressividade fiscal europeia sobre rendas e riquezas muito elevadas.

Você também fala de “uma herança de 120.000 euros para todos” e da instituição de uma renda básica. Como construir uma aliança capaz de apoiar a luta política necessária para construir o “socialismo participativo”?

Para começar, penso que seja importante falar sobre o sistema econômico que queremos. Após a queda do comunismo, paramos de pensar em outro sistema. Mas isso é essencial hoje, se queremos sair das desigualdades sociais e climáticas produzidas pelo hipercapitalismo.

O “socialismo participativo” que defendo alicerça-se em três pilares essenciais: a justiça educacional, que é real e verificável; o compartilhamento do poder por meio de novos direitos de voto para os funcionários das empresas; e a circulação permanente da riqueza, com o imposto progressivo sobre o patrimônio e as sucessões. Atualmente, na Itália ou na França, os 50% mais pobres têm apenas 5% do total de patrimônio imobiliário, financeiro e profissional, contra quase 60% para os 10% mais ricos e quase 25% para o 1% mais rico.

Após o dramático colapso de todas as economias, teremos de esperar pelo crescimento e recuperação das forças do mercado para conseguir uma reforma fiscal verdadeiramente justa?

Se essa abordagem fosse suficiente, já o teríamos percebido há muito tempo. Devemos agir imediatamente. Não há nada de radical no sistema que proponho: aqueles que não herdam nada (atualmente os 50% mais pobres) receberiam 120 mil euros e aqueles que herdam um milhão de euros ainda receberiam 600 mil euros.

Considerando o nível da injustiça social, você acha que seria suficiente?

Se você quer minha opinião, poderíamos ir ainda mais longe. Os partidos social-democratas perderam o eleitorado popular porque abandonaram qualquer ambição de redistribuição.

Você criticou o plano de retomada de Angela Merkel e Emmanuel Macron porque é subfinanciado e porque não prevê uma democratização da política europeia. Esses problemas foram resolvidos pelo “Recovery Fund” proposto pela Comissão Europeia?

Não, porque o problema democrático básico permanece. Devemos nos afastar da regra da unanimidade e da opacidade. Continuamos a operar com os Conselhos europeus que decidem a portas fechadas e, muitas vezes, através de negociações secretas. Isso causará enormes problemas ao acordar o valor dos empréstimos, a natureza das despesas autorizadas e os impostos comuns a serem aplicados. Devemos criar uma assembleia europeia, como a assembleia parlamentar franco-alemã criada no ano passado, na qual as decisões possam ser tomadas por maioria para decidir o nível do plano de recuperação, seu uso, os impostos comuns para os mais ricos.

Existe uma maioria nos governos que pode apoiar essa hipótese?

Com a ItáliaFrança e Espanha, agora existe uma maioria para um plano de retomada muito mais ambicioso. Se esses três países propusessem tal assembleia, a Alemanha acabaria aceitando essa perspectiva e os outros países se uniriam gradualmente. Por outro lado, se ficarmos presos à regra da unanimidade, há o grande risco de aumentar a desconfiança e a frustração. Está na hora de a Europa confiar na democracia.

A transformação que você esperava não ocorreu após a crise de 2008. Por que deveria acontecer em 2020?

A crise de 2008 foi resolvida imprimindo muito dinheiro para salvar bancos e banqueiros. O balanço do Banco Central Europeu passou de 10% do PIB antes da crise para mais de 40% do PIB. Essa política evitou uma depressão generalizada, mas também levou a um aumento dos preços das propriedades e das bolsas de valores e ao enriquecimento dos mais ricos, sem resolver os problemas fundamentais da economia real (falta de investimentos, aumento das desigualdades, mudanças climáticas). Se hoje somos incapazes de demonstrar à opinião pública europeia que podemos mobilizar pelo menos iguais recursos para combater a Covid-19 e estabelecer outro modelo de desenvolvimento, corremos o risco de um divórcio dramático e potencialmente fatal para a construção da Europa.

Nota:

[1] Thomas Piketty é um dos signatários do apelo “Democratizing work“, publicado em 16 de maio por Il Manifesto e, simultaneamente em outros 40 jornais, traduzido em 27 idiomas, assinado por mais de 3 mil acadêmicos e pesquisadores de mais de 650 universidades em todo o mundo.

O economista francês inaugurará a XXI edição da Milanesiana amanhã, às 18 horas. No encontro “Capitalismo, ideologia e desigualdades“, conversará com Ferruccio De Bortoli e Luciano Fontana, moderado por Andrea Califano e Luca Cigna. O encontro é realizado em colaboração com a Fundação Feltrinelli e a Bolsa Italiana. Será transmitido em streaming pelos canais da Fundação Feltrinelli e La Milanesiana.

*Publicado originalmente em ‘Il Manifesto’ | Tradução para o Carta Maior de Luisa Rabolini para o IHU On-line

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