Uma fala deplorável do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante a reunião interministerial de 22 abril, veio a público nesta sexta-feira (22). No vídeo da reunião, liberado por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), Salles sugere ao presidente Jair Bolsonaro que aproveite o foco da imprensa na pandemia para “passar a boiada”. Segundo o ministro, a crise do coronavírua dava margem para que o governo fizesse uma série de mudanças e afrouxasse a legislação do meio ambiente.
“É covardia, falta de transparência total e absoluto desprezo pela opinião pública tentar mexer na legislação ambiental escondido na pior crise de saúde que o país jamais enfrentou”, diz Pedro Passos, presidente da Fundação SOS Mata Atlântica. “Antes havia muita hipocrisia. Agora é sexo explícito, pornografia pura”, resume o ex-ministro do Meio Ambiente Rubens Ricupero.
Para Ricupero – que é um dos mais reconhecidos diplomatas do País –, Salles passou dos limites. “É dizer que a intenção é criminosa com todas as letras. Ele cita a Mata Atlântica. Estão aí para acabar com o bioma mais ameaçado, não contentes em destruir o Cerrado e a Amazônia”, afirma.
Salles, de fato, não escondeu o pragmatismo criminoso em sua declaração. “Precisa ter um esforço nosso aqui – enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto da cobertura da imprensa, porque só fala de Covid – e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, disse ele.
Sem meias palavras, o ministro sugere aproveitar o momento para mudar regras relacionadas ao Ministério do Meio Ambiente, da Agricultura e do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Afirma ter assinado poucos dias antes “uma medida, a pedido do Ministério da Agricultura, que foi a simplificação da lei da Mata Atlântica”. A Mata Atlântica é o bioma mais destruído do país.
Ricupero diz ter ficado espantado. “Não que desconfiasse que isso não existisse, mas em geral as pessoas não dizem estas coisas. Em qualquer país democrático, não só ele (Salles) teria que sair, imediatamente, como seria processado”, diz o ex-ministro. “Não é mais insanidade. É um atentado ao País.” Para o diplomata, a notícia repercutirá negativamente no exterior. “Eles são todos cúmplices disso”, diz, analisando os pares de Salles no governo.
Com ele concorda José Sarney Filho, outro ex-ministro do Meio Ambiente (governo Michel Temer).
“Foi uma postura leviana, irresponsável, que demonstra claramente uma política de desmonte. Com certeza isso terá repercussão em um momento em que o desmatamento da Amazônia aumenta e o Brasil aumenta as emissões de gases-estufa”, diz.
“Isso seguramente terá repercussões negativas e consequências para o agronegócio brasileiro”, aponta Sarney Filho.
“Fiquei estarrecida. Ele não é um ministro de Estado do Meio Ambiente. Ele (apenas) exerce o cargo”, afirma a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira.
A seu ver, a declaração de Salles “é um desastre para a imagem do Brasil. Este prejuízo imenso não ocorre apenas pela fala dele, mas pela sucessão de erros do governo Bolsonaro”, agrega. “Esta frase só faz agravar a percepção de muitos, aqui e no exterior, que o governo Bolsonaro não tem como prioridade defender o meio ambiente”.
Izabella diz que a fala “revela o apequenamento” de Salles, a “falta de sensibilidade como homem público e sua ausência de humanismo em um momento tão crítico e de tanta dor do Brasil”. Em 22 de abril, data da reunião ministerial, o Ministério da Saúde já registrava 45.757 casos e 2.906 mortos no Brasil por Covid-19.
José Carlos Carvalho, ex-ministro do Meio Ambiente no governo de Fernando Henrique Cardoso, classifica como “lamentável” a fala de Salles.
“Estamos todos atônitos. Isso tem repercussão interna porque reforça a percepção que ele age como um antiministro do Ambiente – e, obviamente, reforça a má imagem que o País já tem no exterior”, afirma Carvalho.
Para Carvalho, “isso evidencia que Salles foi colocado no ministério deliberadamente para cuidar dos interesses da economia que degrada o meio ambiente”.
Na opinião da ex-presidente do Ibama Suely Araújo – que saiu do órgão assim que Salles assumiu –, a fala do ministro confirma que “ele está lá para desconstruir o que existe de regramentos ambientais”.
Salles, diz ela, “é um ministro colocado para desconstruir, não para construir. Tem uma visão antipolítica ambiental. Ele não quer que dê certo”. Para Suely, a fala de Salles revela “uma inação calculada”, que o motivou a “parar com a o Fundo Amazônia, não ter política ambiental”.
“A ideia de fazer no meio da pandemia essas ‘simplificações” – que, na verdade, são desconstruções da política ambiental – mostra deslealdade com os brasileiros”, afirma Suely, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima – uma rede de mais de 50 organizações não-governamentais (ONGs) que trabalham com a agenda climática no Brasil.
“Ricardo Salles, na prática, conclamou o governo para uma força-tarefa tendo em vista a destruição das regras ambientais, aproveitando a crise e tramando contra a própria pasta da qual é titular. Solicitou explicitamente apoio jurídico neste sentido”, continua Suely.
A seu ver, Salles “não reúne condições mínimas para continuar a conduzir a Política Nacional do Meio Ambiente. Não tem legitimidade para isso, coloca em risco a imagem do Brasil e o futuro dos brasileiros”.
Para Ana Toni, diretora-executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS), a “descabida declaração do ministro Salles é uma afronta à transparência e ao importante trabalho da imprensa”.
Segundo ela, “soa como um canto do cisne diante da força da sociedade civil, dos povos indígenas e quilombolas, da imprensa, do Congresso e do Judiciário na defesa do meio ambiente”.